terça-feira, 9 de junho de 2015

Garantia de direitos não é a cadeia

Contrapontos à redução da maioridade penal

Leandro Barbosa

Algumas considerações importantes antes da próxima história
O presidente da câmara dos deputados, Eduardo Cunha, anunciou em suas redes sociais, no dia 31 de maio, que a “próxima polêmica” a ser votada no Congresso será a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 171/1993) que prevê a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos de idade. Segundo Cunha, a proposta será votada “até o fim de junho em plenário”. A proposta de emenda foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, no dia 31 de março de 2015, e agora passará pelo crivo do  Congresso mais conservador desde a redemocratização.  O fortalecimento da bancada da bala e dos demais Bs sintetizam o estado deplorável do parlamento, que incita ações que provam a insuficiente sabedoria ou falta de interesse dos políticos brasileiros em tratar de questões tão delicadas, como os direitos da criança e do adolescente no Brasil, pela raiz do problema.
A redução da maioridade penal para os 16 anos de idade instiga a pergunta: quem de fato comete esses crimes que atingem a nossa segurança? Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), somente 0,013%, dos 21 milhões de adolescentes brasileiros cometeu atos contra a vida. Em nota, a Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que no Brasil “os homicídios já são a causa de 36,5% das mortes de adolescentes por causas não naturais, enquanto que, para a população em geral, esse tipo de morte representa 4,8% do total. Somente entre 2006 e 2012, pelo menos 33 mil adolescentes entre 12 e 18 anos foram assassinados no Brasil. Na grande maioria dos casos, as vítimas vivem em condições de pobreza na periferia das grandes cidades”. Diante desses números surge outro questionamento: se não são eles, o que está por trás de tal interesse?
Recentemente a Agência Pública de jornalismo publicou a matéria ”Quanto mais presos, maior o lucro”. Nela, o coordenador do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, Patrick Lemos Cacicedo, questiona a privatização dos presídios brasileiros. Segundo Patrick, “o maior perigo desse modelo é o encarceramento em massa”. Ele também explica a lógica do contrato do Estado e as empresas de segurança, baseando-se na penitenciária de Ribeirão das Neves (MG), a primeira privatizada no país. Patrick diz que uma das cláusulas “estabelece, como uma das ‘obrigações do poder público’ a garantia de demanda mínima de 90% da capacidade do complexo penal durante o contrato. Ou seja, durante os 27 anos do contrato pelo menos 90% das 3336 vagas (do presídio em Ribeirão das Neves) devem estar sempre ocupadas”. Em outra matéria, intitulada “Jogados aos leões”, a Agência entrevista os deputados que são a favor da PEC 171/1993, e o que não é de se admirar, todos são a favor da privatização dos presídios. Ou seja, o interesse está em torno do lucro e não da justiça, e passa longe da garantia de direitos.
Existe um ponto nada explícito nesta situação toda: ao encarar as infrações cometidas por adolescentes apenas pelo viés da segurança pública, ignoramos o fato de que essa problemática é apenas um indicador da falta de acesso a direitos fundamentais. Ao fecharmos nossos olhos para isso, segundo a ONU, “o problema da violência no Brasil poderá ser agravado, com graves consequências no presente e futuro”.
O que espanta é que mesmo com todos esses dados sendo divulgados, mesmo com a Unicef dizendo que o Brasil é o segundo país no mundo em número absoluto de homicídios de adolescentes, atrás apenas da Nigéria, mais de 90% dos brasileiros, segundo pesquisa realizada em 2013 pela Confederação Nacional dos Transportes, aprovam a redução da maioridade penal. Diante de tantas violações, afirma o Unicef, “42 mil adolescentes serão assassinados no Brasil até 2019”.
Sobreviventes
O adolescente W. S., 15 anos, não consegue conter as lágrimas ao falar sobre o irmão, Matheus Silva, assassinado há três anos. Um choro angustiante interrompeu a entrevista por sete minutos, seguida apenas pela única frase dita durante este tempo: “meu irmão… meu irmão”. Matheus tinha 16 anos quando passou a fazer parte do número de adolescentes mortos pela PM brasileira e W. S., 12, quando se viu sem o seu “herói”.
“Eu costumo dizer que toda criança de comunidade é meio que um lutador por excelência ou é forçado a ser um lutador”
Filhos da favela Jardim Gramacho, lugar que abrigou até 2012 o maior aterro sanitário da América Latina, no município de Duque de Caxias (RJ), na Baixada Fluminense, ambos sentiram na pele a dor do abandono. Mãe alcoólatra, pai desconhecido, vivendo num lugar desprezado pelo Estado, suas histórias são a expressão exata da realidade social das favelas brasileiras.S. tinha seis anos e Matheus dez quando saíram de casa por não aguentarem as constantes surras que levavam da mãe todos os dias quando chegava em casa bêbada. Pelas ruas da favela e de Duque de Caxias encontravam ‘conforto’ em caixas de papelão, caixas-d’água vazias, telhados ou nas casas de quem se compadecia. A fome era uma das inúmeras mazelas enfrentadas pelos garotos, um mal que até hoje assola a região, e foi por ela que conheceram o mundo do tráfico. “A única opção era os caras do tráfico, aí a gente ficava lá misturado com eles. Aí os caras ia lá, abraçava a gente, e num deixava a gente ficar com fome!”, conta W. S..
Enquanto o irmão crescia, Matheus foi encontrando o seu lugar na criminalidade e foi este o caminho que os separou. Numa noite de 2012, Matheus e outros dois adolescentes saíram com o intuito de roubarem um carro. O plano seria perfeito se os garotos tivessem se atentado ao sistema de segurança do veículo. No meio da fuga o carro parou. Sem opção, abandonaram o automóvel e correram para roubar outro num posto de gasolina e assim continuarem fugindo. Mas naquele dia o posto tinha como seguranças dois militares. Os policiais, que estavam aproveitando o dia de folga para ganhar um dinheiro extra, renderam os garotos que portavam duas armas de brinquedo e uma de verdade e avisaram os companheiros de trabalho. Naquela noite, a história se encerrou com os adolescentes sendo eliminados pela PM fluminense em um Beco de Duque de Caxias. Matheus morreu com tiros na cabeça.
O cuidado de irmão mais velho salvou a vida de W. S., mas não o livrou da dor: “eu ia com eles, mas ele falou: ‘hoje tu não vai não, mané’… fui pra casa. Ele sumiu…Três dias depois minha prima encontrou ele no IML. Ia morrer eu, meu irmão e o outros moleques. Foi um sofrimento muito grande. Pra mim, a única família que eu tinha era o meu irmão. Sem o meu irmão tudo é difícil!”.
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Crianças encontram esperança no esporte
O adolescente, acostumado a lutar, encontrou refúgio no Judô graças a ONG Ide Missões. O projeto desenvolvido pelo pastor Anderson Leite, no Jardim Gramacho, trouxe possibilidades, indicou uma saída. Por meio da prática de artes marciais muitas crianças deixaram o tráfico e encontraram refúgio na organização. Cerca de mil crianças e adolescentes são atendidos. Nem todos praticam o esporte, mas todos comem, e este detalhe faz toda a diferença. “As crianças estavam treinando e um garoto desmaiou. Corri e comprei uma coca-cola e uma bananada e demos a ele para a taxa de glicose subir. Depois, reuni a criançada e dei uma bronca: ‘vocês tem que comer antes de vir treinar! ’. Olhei para o garoto e disse: ‘ O que você comeu? ’ Ele virou e respondeu: ‘ Pastor, tem três dias que não tem nada lá no barraco pra comer ’”, disse Anderson, que, depois disso, vendeu seu carro e buscou meios para alimentar as crianças. Hoje, o projeto tem uma cozinha industrial que oferece refeições diariamente, e conta com doações mensais para isso.
W. S. chegou ao projeto aos nove anos de idade, na época, “cheio de marra”, explica Anderson, fazendo referência a agressividade do garoto. O adolescente estava convicto a vingar a morte do irmão, a ideia era: “se tornar soldado do tráfico para matar policiais”. Mas o dia a dia no projeto foi mudando os ideais: “hoje, ele coleciona títulos, o moleque tem talento, tem o dom pra luta. Eu costumo dizer que toda criança de comunidade é meio que um lutador por excelência ou é forçado a ser um lutador. Eles lutam pra sobreviver! Quando se dá um kimono pra essa criança, dá uma possibilidade dele desbravar um futuro melhor, então ele se apega a isso com unhas e dentes”.
Determinado, W. S. treina quase todos os dias da semana: “meu sonho é entrar na seleção brasileira (de judô)”, diz. Enquanto isso não acontece, ele ainda encara um medo: a solidão. Mesmo com todo cuidado que recebe na ONG, a morte do irmão deixou um vácuo e a busca por um lugar para dormir se tornou mais dolorosa que o normal: agora ele tem que lidar com a lembrança de alguém que foi arrancado do seu lado. Mesmo com a possibilidade de ficar no projeto, o garoto hesita: “aqui é muito grande, eu não gosto de ficar sozinho”.
Eu vi a cara da morte e ela estava viva
Em uma das ruas do Jardim Gramacho um grupo de moradores de rua e alguns da favela fazem um churrasco. Estavam comemorando um aniversário. Num lugar onde as pessoas viram estatísticas da violência, comemorar mais um ano de vida tem outro significado: sobrevivência! No cardápio, o melhor que podiam oferecer: pelancas e cachaça. Foi ali que encontrei T.S.S., 16 anos, com seu bebê de um ano e três meses.
Nascida em Piabetá, distrito de Magé (RJ), cerca de 50 km da capital carioca, a adolescente está morando há poucos meses na comunidade. A garota carrega no corpo as marcas da violência e na memória às vezes que quase morreu. Vítima da desigualdade que mata e faz sofrer, ela tem mais sete irmãos, e cresceu sendo cuidada pela irmã adolescente, enquanto sua mãe trabalhava na roça para sustentar a família. A vida piorou quando a sua mãe passou a morar com o namorado no Gramacho e desse relacionamento em diante passou a usar drogas. Os filhos passaram a ser criados por familiares e T.S.S., aos 13 anos, encontrou seu primeiro ofício e também, pela primeira vez, encarou a morte.
“Eu tava traficando, aí, um policia tava com uma foto minha, aí ele disse: ‘ você que é a Tatá, né? ’ Eu respondi: que isso moço, quem é a Tatá? Ele falou: ‘você!’ Aí eles ficavam me dando socos, pedindo pra eu entregar um cara, eu disse que não sabia quem era. Eu tenho uma costela deslocada e outra quebrada”, conta a adolescente, pedindo uma pausa para ver como estava o seu bebê na sala ao lado. Volta e segue com a história: “aí perguntaram de quem era aquele tanto de maconha, eu disse que era minha, que eu era usuária. Eles falaram: ‘se você não é ninguém, não é traficante, porque eu to com a sua foto na mão?’ Aí, eles me levaram, tipo… pra um ‘ valão ’, e me bateram muito, muito, muito, muito… Me deram socos no pescoço, na costela, bicavam (chutavam) minhas pernas, e me jogaram dentro do valão. Passou um homem de Kombi, um pastor, e me tirou de lá de dentro. Fiquei três meses internada no hospital”.
“Num lugar onde as pessoas viram estatísticas da violência, comemorar mais um ano de vida tem outro significado: sobrevivência!”
Os conflitos das facções nos morros cariocas limitam os moradores que, por vezes, não podem circular nos morros rivais. E isso, T.S.S. sentiu na pele, ao ir numa festa, convidada por uma amiga, num morro liderado pelo facção Amigos dos Amigos (ADA). Os traficantes ficaram sabendo da adolescente e a abordaram. Pela segunda vez, ela encarou a morte. “Eu não sabia que lá era outra facção. A festa tava cheia de garoto, eles disseram: ‘ aí, que o vermelho tá fazendo aqui?’. Eu falei que não sabia que lá era outra facção, que eu morava na roça em Piabetá. Eu subi umas escadinhas e tinha uma mureta pra um cemitério, eles me cercaram, mais de trinta garoto queria me comer. Um menino disse: ‘ ou você dá pra todo mundo ou pula pro cemitério ’. Aí eu pulei pro cemitério! Eu achei que ia quebrar minhas pernas, mas eu caí sentada e sai correndo. Minha sorte é que era domingo e o portão tava aberto”.
A adolescente se casou aos 14 anos com um rapaz de 19, mas com o passar do tempo o sonho de formar uma família se tornou um pesadelo: “ele só pensava em me bater. Disse a ele que eu não iria mais ficar feito boba em casa, ele deu dois socos no meu olho. Aí fui embora!”, diz, enfática, como alguém querendo mostrar a força de sua ação. E continua: “ele já tinha me batido outras vezes, quando ele dava os ‘loco’ dele de ciúmes. Eu não podia sair de casa, não podia nem ir no portão. Aí, ele tentou me matar na escada. Disse que se eu não ficasse com ele, ninguém ia ficar, que eu ia morrer! Aí eu pensei comigo mesma: poxa, eu vou ficar dentro da casa de uma pessoa que fala que me ama e quer me matar? Não sabia se amanhã ou depois eu ia acordar viva! … Não tinha pra onde ir, aí eu vim pra cá morar com minha mãe”.
Na favela Jardim Gramacho, aos 16 anos, ela encara a morte pela quarta vez. Indo para a piscina de uma escola pública com as irmãs, uma série de crianças da comunidade foi atrás. Elas subiram num caminhão que estava estacionado no caminho e uma delas mexeu num produto químico que estava na carroceria. Com o contato com água, o produto reagiu queimando a pele da menina, que tinha oito anos na época. A reação gerou bolhas nas nádegas da criança, que disse para a mãe que a culpa foi de T.S.S.. Num ímpeto, a mãe da menina procura o chefe do morro que manda chamar à acusada para esclarecer os fatos. Mais uma vez a adolescente é espancada. Com o braço quebrado e jurada de morte, ela procura ajuda no Ide Missões. Anderson intervém, na negociação ele se responsabiliza pelo tratamento da criança e o traficante libera T.S.S. da sentença.
A gana pela vida a faz sonhar e persistir é uma coisa que ela sabe fazer muito bem: “eu quero vencer e vou lutar!”. Para isso, ela enumera os seus sonhos:
  1. Construir seu barraco num pedaço de terreno que ganhou na favela;
  2. Arrumar um trabalho;
  3. Fazer um curso de computação;
  4. Voltar a estudar;
  5. Fazer uma faculdade;
E explica: “se eu não andar certa no mundo, eu vou morrer! E aí, quem vai cuidar do meu filho?”.


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Leandro Barbosa é membro da Igreja Caverna de Adulão e faz parte da Ong Atos de Justiça. Léo caminha junto com a Rede FALE em BH


Texto publicado originalmente em http://historiaincomum.com.br/garantia-de-direitos-nao-e-a-cadeia/

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